Homeopatia na saúde pública
Coluna escrita por Hélio Schwartsman, na “Pensata”, em 25/05/2006
Vale-tudo no SUS
O Deus em que não acredito é testemunha de que nada tenho contra a homeopatia, a reflexologia e várias outras terapias em que não creio, desde que não precisemos enterrar dinheiro público em técnicas cuja validade científica ainda está por ser provada. Assim, vejo com preocupação a edição da portaria nº 971, do Ministério da Saúde, que determina a inclusão de acupuntura, homeopatia, fitoterapia e termalismo social/crenoterapia nos serviços públicos de saúde.
Imagino que, a essa altura, o leitor esteja se perguntando que diabos é a crenoterapia. Também tive de recorrer aos dicionários para descobri-lo, mas teria sido melhor permanecer na ignorância. "Crenoterapia", atesta o "Houaiss", é a "utilização medicinal de águas minerais como terapia". A primeira imagem que me veio à cabeça foi o SUS, ao qual faltam pessoal, equipamento e insumos básicos, custeando a viagem de pacientes a Spa, na Bélgica, a famosa estância hidromineral que, no Brasil, deu nome às clínicas de emagrecimento freqüentadas pela insaciável "elite branca", se é lícito citar Cláudio Lembo.
Admito que o exemplo é caricato, mas ele transmite bem a noção, aliás autoevidente, de que a crenoterapia --seja ela social ou não, pouco importa-- não pode ser prioridade num sistema em que hospitais públicos freqüentemente ficam até sem esparadrapo. Em nosso contexto de grande carência de recursos, potencializada pelo assalto sistemático de esquemas de corrupção como a Máfia dos Sanguessugas, é preciso centrar esforços em terapias cujos efeitos já estejam demonstrados e de preferência também estratificados. Se vivêssemos na Suécia ou algum outro paraíso social-democrata, não me incomodaria que o Estado bancasse homeopatia, florais de Bach e quejandos. Infelizmente, estamos no Brasil.
Não me interpretem mal os adeptos dessas teorias. Cada indivíduo é livre para acreditar no que bem entende, seja Deus, a memória da água, as virtudes curativas dos cristais, a "vis vitalis" de Caxambu, ou o Monstro do Spaghetti Voador. E eu, ao contrário dos críticos mais ferozes da medicina alternativa, reconheço que, em determinadas situações, ela pode produzir bons resultados. Na verdade, tudo a que apusermos o rótulo "terapia", desde que não mate, funcionará, pois a maior parte das doenças que nos acometem passam sozinhas. Mais do que isso, o chamado efeito-placebo está bem documentado pela literatura científica: apenas crer que está sendo tratado já um bom passo em direção à cura.
O problema dessas práticas é que, além de demonstrarem baixa eficiência em estudos duplo-cego controlados, elas têm pressupostos teóricos muito frágeis. É evidente que beber bastante água --desde que você não tenha diabetes insípido -- e tomar banho é bom para a saúde. Muito melhor se o fizermos num ambiente relaxante como o de Spa. Mas, tratando-se de H2O potável, e excluídas condições extremas, tanto faz se ela está a 37ºC ou a 23ºC, se seu pH é 6,8 ou 7,2 e se apresenta ou não traços de radônio. Frise-se o termo traços, que já indica quantidades mínimas.
Tomemos o caso da homeopatia, que parece ser a mais popular das terapias alternativas.
Dois de seus princípios mais elementares, o "similia similibus curantur" (coisas semelhantes são curadas por semelhantes) e a noção de que a eficácia dos preparados aumenta com a diluição contrariam tudo o que sabemos de fisiologia e de química. Se o "similia..." fosse um princípio heurístico universal, como quer a teoria postulada pelo alemão Samuel Hahnemann (1755-1843), o criador da homeopatia, deveríamos tratar a hipertensão arterial administrando sal ao paciente -- o que, sabe-se, apenas contribuiria para agravar seu estado. Já a química nos garante que, quanto mais diluída for uma solução, mais diluída ela será, ou seja, menos do soluto conterá.
Medicamentos homeopáticos passam por tantas e sucessivas diluições que, ao final do processo, já não sobraram moléculas do ingrediente original. Daí a dificuldade para explicar sua atuação em bases físico-químicas.
É claro que a medicina não é exatamente uma ciência, mas antes uma arte. Se, mesmo contrariando tudo o que sabemos de química, física e biologia, a homeopatia funcionasse para além de qualquer dúvida, de acordo com grandes estudos controlados, teríamos de jogar fora nossos livros de ciências e ficar com a doutrina de Hahnemann. Mas esse não é absolutamente o caso.
Muito pelo contrário, em meados do ano passado, a prestigiada revista médica britânica "The Lancet" publicou uma grande metanálise que reavaliou 110 testes clínicos envolvendo produtos homeopáticos e placebos. Concluiu que não havia diferença estatística significante entre ambos. A publicação desse estudo, conduzido por pesquisadores da Universidade de Berna, foi considerado um dos mais duros golpes contra a homeopatia nos últimos anos.
Não tenho, evidentemente, a pretensão de convencer nenhum homeopata a abandonar sua crença nem nada parecido. Admito até que pode haver vantagens em tomar preparados inócuos contra as doenças que passam sozinhas. Produtos homeopáticos tendem a ser mais baratos que as drogas alopáticas e não produzem efeitos iatrogênicos indesejados. Mais do que isso, médicos homeopatas têm o excelente hábito de ouvir as queixas de seus pacientes.
Se os alopatas os imitassem e melhorassem um bocadinho a anamnese, fariam um trabalho muito melhor e ainda reduziriam os custos da medicina deixando de pedir exames desnecessários e de perder tempo com suspeitas diagnósticas infundadas.
Só que, ainda melhor e mais barato do que tomar remédios homeopáticos, é só recorrer a drogas de verdade quando realmente necessário. E, na situação de carência generalizada que é a marca da maioria de nossos hospitais públicos, precisamos priorizar aquilo que faz a diferença entre a vida e a morte, ou seja, a administração judiciosa de antibióticos, corticoterapia, procedimentos invasivos --mais ou menos tudo aquilo que a "medicina alternativa" abomina.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001